Sem conseguir cumprir as metas do programa RenovaBio, as distribuidoras regionais de combustíveis decidiram entrar na Justiça para evitar multas da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e também para tentar mudar o cálculo das obrigações para redução da emissões de carbono. O RenovaBio é uma política federal criada com objetivo de expandir a produção de biocombustíveis no Brasil e ajudar na descarbonização do País. As regras estão em vigor desde 2019.
O Estadão/Broadcast apurou que, pelo menos, 18 empresas já entraram na Justiça Federal e outras oito se preparam para fazê-lo. Dessas, ao menos 13 já obtiveram decisões liminares favoráveis à suspensão de suas obrigações nos termos impostos pela ANP, sempre mediante depósitos judiciais. Em nota, a ANP não comenta ações judiciais em andamento. A Brasilcom, associação que representa as distribuidoras, não quis comentar o assunto.
O movimento em busca de liminares ganhou força pouco antes de setembro, quando venciam as metas de descarbonização dessas empresas relativas a 2022. Elas eram obrigadas a tirar de circulação uma quantidade suficiente de Créditos de Carbono (CBios) adquiridos na B3. Cada CBio equivale a uma tonelada de carbono.
O RenovaBio é composto por três eixos estratégicos: metas de descarbonização; Certificação da Produção de Biocombustíveis; e Crédito de Descarbonização (CBIO). As metas nacionais são estabelecidas pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e anualmente desdobradas, pela ANP, em metas individuais compulsórias para cada distribuidor, conforme a participação no mercado de combustíveis fósseis.
Para comprovar o cumprimento das metas individuais, as distribuidoras precisam comprar e aposentar os Cbios, ou seja, retirar de forma definitiva os certificados do mercado, impedindo qualquer negociação futura. Esses papeis são ativos financeiros negociáveis em bolsa, emitidos por produtores de biocombustíveis com base nos níveis de eficiência alcançados em relação às suas emissões.
O Estadão/Broadcast teve acesso a parte dos processos movidos pelas empresas, que correm em sigilo. Nenhum deles tem decisão sobre o mérito. Mas a estratégia de obter liminar que suspende as obrigações definidas pela ANP tem se mostrado promissora. Ela permite a essas empresas driblar os altos preços dos Créditos de Descarbonização (Cbios) e continuar operando, sem pagamento de multa ou suspensão de inscrição, as punições previstas para as empresas que descumprem o programa.
O fenômeno denota a dificuldade das distribuidoras, sobretudo as pequenas e médias, de cumprirem o RenovaBio. Segundo a ANP, de um total de 141 empresas, 54 (38%) não atingiram integralmente as metas do programa, sendo que 43 delas (30%) não aposentaram sequer um único crédito de descarbonização.
Decisão recente
Uma das mais recentes decisões liminares a favor de uma distribuidora em detrimento do RenovaBio foi obtida em segunda instância, no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Em 31 de outubro, o desembargador Alysson Fontenele, do TRF-1, acolheu a argumentação de uma empresa de São Paulo, que pediu anonimato, e concedeu liminar suspendendo temporariamente suas obrigações dentro do RenovaBio.
Na decisão, o desembargador reconhece a importância do programa e sua validade para que o País alcance metas de descarbonização acordadas internacionalmente, mas assinala inconsistências há muito apontadas pelo setor, como a ameaça especulativa que eleva os preços dos CBios e os riscos da queda na oferta dos papéis, com possível descolamento da demanda imposta pelo programa nos próximos anos.
A decisão, que previu depósito judicial de R$ 2,2 milhões, impede que a ANP aplique multas à distribuidora em questão ou casse sua inscrição. Segundo informações públicas da ANP, essa empresa deveria compensar 97,42 mil toneladas de carbono por meio da aposentadoria de número análogo de CBios até setembro deste ano, mas só cumpriu 20% dessa meta e agora briga na Justiça para não ser punida.
O magistrado justificou a decisão destacando “perigo de dano” na negativa da primeira instância ligado à possibilidade de multa pela agência reguladora; risco de descontinuidade empresarial caso a empresa tivesse de arcar com o total exigido pelo RenovaBio ou com punições; e consequente alta de preço dos combustíveis para o consumidor final, caso ela deixasse de operar.
Estratégia
A primeira empresa a conseguir uma liminar do tipo, ainda em setembro de 2022, foi a distribuidora de pequeno porte Mar Azul (ex-Petrozara). À época, por conta da pressão política do setor em reação à disparada de preço dos CBios, o governo Jair Bolsonaro terminou por prorrogar a data limite da aposentadoria anual dos créditos para setembro de 2023. Este ano, com a aproximação do novo prazo e mesmo depois, para evitar punições, as empresas passaram a replicar a estratégia da Mar Azul.
Na ação pioneira, a Mar Azul questionou na Justiça a forma de cálculo das metas de descarbonização, sob o argumento de que a meta individual de cada empresa deveria ser calculada pela multiplicação do seu porcentual de participação no mercado nacional pelo faturamento do ano anterior, o que criaria uma espécie de “teto financeiro” para cada empresa no programa, dando maior previsibilidade ao negócio.
Pela regra do RenovaBio, no entanto, essas metas são calculadas pela multiplicação do market share (participação no mercado) por uma meta anual de descarbonização dos transportes definida pelo Ministério de Minas e Energia (MME) a cada ano na forma de toneladas de carbono. Como cada CBio equivale a uma tonelada de carbono, o cálculo da meta individual é a quantidade de certificados a ser aposentado pela empresa na data limite.
O problema, reclamam as distribuidoras, é que o preço dos créditos segue sendo variável fora de qualquer previsibilidade e, nos últimos anos, inflacionada. Quando começaram a ser comercializados, no fim de 2019, os CBios custavam cerca de R$ 15 por unidade, mas ultrapassaram R$ 200 em pouco mais de dois anos depois. Hoje, os créditos estão na faixa dos R$ 120.
O Ministério de Minas e Energia já admitiu, em auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), que o preço de equilíbrio ideal do certificado seria de R$ 40, bem abaixo do praticado atualmente.
Essa volatilidade faz com que o montante final das metas impostas pela ANP fique muito acima do defendido como adequado pelos reclamantes. Uma solução temporária para o imbróglio, invocada pela defesa dessas empresas a fim de demonstrar sua boa-fé, tem sido a realização de depósitos judiciais no valor que elas entendem ser adequados à sua obrigação de descarbonização.
Sócio do Montenegro Filho Advogados, Sergio Montenegro atua na maior parte dos casos e diz que a estratégia de atacar frontalmente o RenovaBio não tem funcionado na Justiça, ao contrário da proposição de correções, com apontamento de inconsistências, como a veia especulativa dos CBios.
Ao longo dos processos, diz Montenegro, a definição do montante adequado a ser pago tem sido apontada por consultorias de inventário de carbono validadas pela própria ANP. A agência aprova os serviços dessas consultorias para o processo de cálculo de geração dos Cbios por produtores de biocombustíveis, a outra face do programa.
Montenegro está à frente de 17 ações, das quais 12 resultaram na obtenção de liminares favoráveis às distribuidoras, sendo 10 na primeira instância (Justiça Federal do Rio de Janeiro e do Distrito Federal) e duas na segunda instância, no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, após indeferimento no primeiro grau. A soma dos depósitos judiciais relacionados nesses casos supera R$ 15 milhões.
Autor/Veículo: O Estado de São Paulo